Como Matar uma Anfisbena
Um post-mortem porque eu acho que o meu novo jogo ficou bem legal. Você pode jogá-lo agora aqui.Introdução
Dificilmente falo sobre um jogo meu. Simplesmente não acho que há muito a ser dito sobre eles: são curtos, mecanicamente simples e impessoais. Acho que, de todos os dez jogos que publiquei até agora, eu genuinamente gosto de três (deixo como um exercício ao leitor tentar descobrir quais). Não é como se eu odiasse os outros, mas não tenho o mesmo apego que tenho por esses três.A verdade é que, como muitos outros desenvolvedores, eu faço meus jogos pelo prazer de ver um carinha andando na tela. Não acho isso necessariamente ruim, mas sinto que perco a oportunidade de usar esse espaço para aguçar alguma parte dormente da minha criatividade. Em parte, este post é um exercício para materializar essa reflexão. Espero que, ao racionalizar de onde a ideia do jogo veio, eu consiga justificar de alguma forma a direção que tomei. E que também consiga enfrentar a frustração de perceber que essa direção não necessariamente atingiu os objetivos que eu imaginava, algo que entendo que acontece com todo projeto. Considero importante treinar esse músculo que lida com frustrações, porque acredito que só consigo evoluir criativamente ao explorar novas ideias, que levam a mais frustrações (um Ouroboros!).
Inspirações
Por volta do fim de 2022 e começo de 2023, eu tive um sonho que ficou na minha cabeça. Eu estava em uma sala com um dragão com olhos de caleidoscópio, e eu precisava matá-lo. Os olhos dele giravam e os padrões das pedras se alteravam em conjunto, a luz que entrava na sala refletia neles, iluminando-nos com a cor dos cacos.O sonho me marcou não tanto pela estética que, por mais esotérica que seja, não é muito diferente do que pode acontecer em um sonho, mas muito mais pelo sentimento que ele despertou em mim. Era uma obsessão desinteressada: eu sabia que era algo que não costumava nem gostava de fazer, mas era a única coisa na minha cabeça, o único resultado possível, natural e consequente.
O sonho acabou e não o matei. Na verdade, ficamos nos encarando o tempo todo, e por isso a imagem ficou gravada na minha cabeça. Não fiz nada com o sonho, só o escrevi no meu diário e ele ficou ali, em algum canto da minha memória.
Voltando para 2025. Eu estava fazendo meu jogo mais recente, o Palimpsesto. Eu ainda estava formando a ideia do que ele seria, mas sabia que devia envolver escrever um diário e ter alguma arte procedural gerada a partir do que você escreveu. Por conta disso, acabei revisitando algumas das minhas anotações e reli sobre o sonho do Dragão com Olhos de Caleidoscópio - ele nunca tinha exatamente saído da minha cabeça, sempre esteve ali - mas isso me fez ligar alguns pontos. Eu estava querendo adicionar uma história ao Palimpsesto (é um tipo de jogo bem estranho para se ter uma história, não? Por isso mesmo me pareceu interessante) e talvez usar o sonho do Dragão como base pudesse funcionar!
Não funcionou :(.
Eu não estou acostumado a escrever histórias, e o formato que eu estava planejando para o jogo já exige bem mais músculo do que o frango aqui tem. Eu ainda gosto muito da ideia de ter uma meta-história em um diário que você reescreve conforme adiciona suas próprias entradas, mas não consegui fazer nada que chegasse perto de me agradar. Tentei trocar a base do sonho para uma coisa baseada em House of Leaves (o único livro que desenvolvedores de jogos leem), trocar o dragão por um
E outra coisa aconteceu enquanto eu estava terminando o Palimpsesto: eu comecei a jogar UFO 50.
A verdade é que eu acho que poderia fazer essa narrativa funcionar se eu desse mais corpo a ela: se eu tivesse feito um esboço mais planejado, em vez de apenas conectar blocos de texto mais ou menos soltos no Excalidraw, e depois os colocado no jogo para ver como ficariam no mundo. Enfim, se eu o tirasse mais do mundo das ideias e o levasse para o mundo real, talvez algo satisfatório pudesse ter saído. Mas isso levaria tempo, e agora eu estava muito mais feliz usando esse tempo para pegar todas as cerejas do UFO 50.
Não quero transformar este post em uma review de UFO 50, mas eu o acho sensacional. E, dentre várias bangers, três deixaram uma marca mais forte: Barbuta, Mooncat e Divers. Todos são jogos feitos pelo desenvolvedor fictício in-game Thorson Petter, que, no mundo real, se traduzem majoritariamente no Eirik Suhrke (o cara que fez a música do Spelunky e Downwell).
O que mais me cativou nesses jogos foi como eles incentivam a exploração e a busca por segredos. Existe bastante fricção quando você interage com esses mundos:
- Em Barbuta, você anda estupidamente devagar. Seu pulo é ínfimo e o alcance da sua espada é minúsculo.
- Em Mooncat, todo o esquema de controle tradicional de jogos de plataforma é defenestrado, e você precisa reaprender a andar e pular.
- Em Divers, nenhum dos símbolos do combate é explicado, muito menos o que cada item faz. É como se tivessem lhe dado um RPG sem o manual, e você mesmo precisa descobrir as regras.
Não acho que essa ideia seja exclusiva desses jogos, mas foi neles (e especialmente no Barbuta) que eu percebi uma estrutura que eu poderia tentar
Então foi assim que decidi começar a fazer o Amphigeum, um jogo que usa meu sonho do Dragão com Olhos de Caleidoscópio como flavour e Barbuta como gameplay. Em outras palavras, eu queria fazer meu próprio Barbuta.
Como um dragão virou uma cobra?
E por que existem tantos Ouroboros???A resposta curta é: eu acho eles legais ^^.
Elaborando um pouco mais, assim como todos os temas neste jogo, eles não são muito profundos. Alguns símbolos do meu sonho refletem situações da minha vida, mas acho que são tão genéricos que podem ser aplicados a praticamente qualquer coisa. Então, para mim, eles têm um significado, mas não espero que tenham o mesmo para você.
Eu gosto bastante do símbolo do Ouroboros. É um símbolo bem batido, mas eu gosto de todas as analogias que podem nascer dele. Isso é um pequeno spoiler, mas um dos puzzles do jogo envolve movimentos circulares e outro, viver e morrer, então importar a simbologia do Ouroboros para o jogo foi bem natural. Transformar o dragão na Anfisbena foi um corolário disso. Um dragão como chefe de uma masmorra é algo bem batido, então transformá-lo em uma serpente de duas cabeças, além de deixar o jogo um pouco mais interessante, combina mais com o tema.
A existência de tantas pseudo-curvas de Hilbert vem do mesmo motivo. Eu gostei que no Palimpsesto eu fiz um shader para ficar rodando na tela inicial, então, bem cedo no desenvolvimento do Amphigeum, eu fiz um shader que parecesse com o movimento de uma cobra. O único algoritmo que achei que tinha um bom equilíbrio entre ser fácil de implementar e ter um visual interessante foi o das curvas de Hilbert. E como eu as usei na tela de título, decidi reutilizá-las mais vezes no jogo.
Inclusive: eu tentei fazer um paralelo entre uma curva de segundo grau para cima representando a Anfisbena e a curva para baixo representando o avatar do jogador, mas não sei o quanto isso é perceptível haha.
Mecânicas e verbos
Acredito que a parte mais divertida do Amphigeum é descobrir suas mecânicas sozinho, então vou ser bem generalista aqui. Não se preocupe em levar spoilers, mas acho que ler isto depois de jogar pode ser uma escolha melhor.As experiências que nosso cérebro decide marcar são engraçadas. Para mim, uma dessas experiências foi uma sessão completamente banal de Dark Souls II que tive em 2014. Em poucas palavras, existe um clã no qual você pode entrar para invadir o mundo de outros jogadores em uma área específica (a Grave of Saints). Essa área é uma catacumba, ou seja, é bem fechada e com corredores estreitos. Eu sempre gostei de usar espadas leves no Dark Souls, com ataques rápidos e retos, como floretes (sim, pode me chamar de casual).
Em uma das invasões que fiz, eu estava contra outro jogador com uma espada larga - que utiliza principalmente ataques curvos com uma grande área de efeito em cone. Aconteceu que, no meio da luta, acabamos entrando em um desses túneis da catacumba e, por ser tão estreito, todos os ataques dele batiam na parede e eram cancelados. Por conta disso, consegui uma vantagem com os ataques retos do florete e ganhei com bastante facilidade. Não acho que essa interação seja algo muito complexo ou inovador, mas me marcou como a escolha do ambiente realçava as características de cada espada.
Desde então, sempre que um jogo meu tem espadas, tento implementar essa distinção entre ataques estreitos e curvos haha. É uma mecânica que está no primeiro jogo que publiquei (Dungeon Lizard) e que também tinha experimentado no meu Dungeon Crawler 3D que desisti de fazer no ano passado.
Logo no começo do Amphigeum, decidi que esse seria um dos puzzles: uma luta em um corredor estreito que você não consegue ganhar com uma espada curva e precisa de um florete. Embora "lutar" tenha sido o primeiro verbo que pensei quando estava elaborando o jogo, acho que ele rapidamente perdeu força. No começo, eu até tentei colocar essa situação em que o espaço é um grande dificultador e o jogo com o florete ficaria mais fácil, mas decidi deixar isso em segundo plano e focar nos outros verbos. Ainda gosto de como o sistema de ataque ficou no final: ele exige que você se comprometa com o ataque e o deixa vulnerável por um bom tempo. Ao mesmo tempo, ele é meio "travado" e difícil de dominar, mas segue uma lógica constante, o que permite que, após um pouco de treino, você o entenda bem o suficiente.
Os outros verbos que decidi trabalhar acabaram virando os personagens principais do jogo: andar e esperar. Como expliquei nas minhas inspirações, era vital, para criar essa fricção, que o movimento fosse lento e desajeitado. Eu também queria que ele tivesse o sentimento do pulo do Barbuta, em que, quando você realiza a ação, está se comprometendo com ela. Por isso, optei por um sistema em que, ao apertar o direcional, você é impulsionado naquela direção e tem pouco controle durante o movimento. O efeito final é um movimento que parece com "pulinhos", e acho que o grande charme do jogo está neles. Eu também fiz questão de que todo passo emitisse um som. Isso, combinado com a ausência de música, faz com que você fique completamente consciente de cada passo, cada segundo.
Uma consequência dessa lentidão, somada ao pequeno número de salas (36), é o que meu queride amigue Sol pontuou: o jogo te convida a desenhar um mapa. Nos meus próprios playtests, não acabei fazendo isso porque, bem, eu já tinha todo o desenho do mapa na própria engine. Além disso, eu também já tinha feito um rascunho quando estava explorando qual poderia ser o layout inicial e como eu distribuiria os puzzles, NPCs e itens. E fiquei muito feliz que elu sentiu isso, pois, para mim, desenhar o mapa é a síntese do que eu buscava: transformar o ato de jogar, de um mero consumo passivo, para uma maneira ativa de se engajar com a obra.
Outra inspiração de design que apliquei veio de Tunic. (Spoilers de Tunic a seguir.) Eu gosto como em Tunic a maneira de interagir com o puzzle principal do jogo (o Golden Path) evolui. No começo, você é levado a crer que existe um código secreto que pode ser executado para interagir com o mundo. Depois, descobre que pode executar um código específico quando um símbolo aparece. E, finalmente, descobre que o próprio símbolo dita o código a ser executado, invertendo completamente a relação, mas de uma maneira tão consistente que faz todo o sentido.
Acho que essa consistência é o epítome da "filosofia" que infestou os jogos indies desde os anos 2000, de que o jogo "deveria conseguir ensinar todas as suas mecânicas sem nenhum texto, só por gameplay" (em resumo, é aquele vídeo lá do Egoraptor). Eu vou ser o primeiro a jogar a pedra. Sim, eu gosto dessa "filosofia", na verdade - inclusive, acho que todos os jogos que mencionei até aqui a utilizam - mas acredito que ela pode ser reformulada de uma maneira muito mais proveitosa: "mantenha um nível de consistência e clareza em seu design, de tal forma que, ao interagir com o mundo, o jogador consiga descobrir ideias mais complexas por si mesmo". E acredito que essa ideia pode ser particularmente útil em situações onde mecânicas são mais bem explicadas pela experimentação do que por palavras. Por exemplo, acho que seria difícil explicar as regras de movimento do Mooncat com símbolos e texto, mas com cinco minutos brincando com os controles na primeira tela você consegue pegar a visão (bem, mais do que isso, descobrir os controles e dominá-los faz parte da graça do Mooncat, então explicá-los logo de cara seria estragar a diversão, mas você entendeu.).
E, modéstia à parte, existe um puzzle (ou uma classe de puzzles) no qual acho que consegui aplicar bem essa ideia de consistência. Acho que é o sistema com cujo resultado fiquei mais satisfeito. Inclusive, ele é tão consistente que você pode até conseguir um dos três finais sem nem o entender completamente, apenas a primeira parte dele!
Conclusão
Claro, conforme eu avançava no desenvolvimento, comecei a perceber alguns pontos que poderiam ser melhor trabalhados ou até completamente substituídos por ideias melhores. Um dos finais, por exemplo, no fim de abril/começo de maio, quando estava começando a fazer o jogo, parecia uma ideia muito boa. Porém, com o tempo, achei que ele ficou tão chocho que pareceu mais legal adicionar um novo final supersecreto para ser mais satisfatório.Tive várias meias-ideias também que decidi que era melhor cortar. Por um tempo, eu genuinamente considerei fazer uma animação em rotoscopia para ver se conseguia melhorar o final chocho. Considerei até criar uma "cutscene" no começo do jogo com imagens estáticas que criassem um mito da Anfisbena com Olhos de Caleidoscópio, mas achei que daria muito trabalho também. Inúmeras ideias de puzzles muito legais, mas complexas demais para serem adaptadas ao escopo do jogo, também tiveram que ser guardadas para um futuro indeterminado.
Enfim, foram várias "coisas que passaram pela minha cabeça"™, mas como já estava no meu quarto mês de desenvolvimento de um projeto que era para ser bem simples, decidi não esticar a corda mais do que o necessário. Acho que consegui expandir meus limites tanto na arte quanto no design e na programação.
Finalmente, também queria reservar um parágrafo para agradecer meu amigue Sol, que não só fez três (03!) músicas para o meu joguinho, mas também o playtestou intensivamente a ponto de conseguirmos arrumar vários bugs que eu não tinha percebido e melhorar várias das dicas dadas ao longo do jogo! E, COMO SE NÃO BASTASSE, também fez um detonado estilo gamer-faqs extra-semi-quasi-oficial aqui, que é uma delícia de ler. Acho que esse é o melhor presente que um amigo pode receber, e meu coração fica muito quentinho com esse carinho ^^. Foi muito divertido ficar brincando de Charada, te dando dicas vagas e reagindo com um :thinking-emoji: às suas mensagens quando não queria nem confirmar nem negar nada.
No fim, como em todo jogo que faço, para mim o mais importante é a jornada, e estou bem satisfeito com a desta. Então, finalmente posso dizer:
Eu matei a Anfisbena.
Publicado em: 2025-09-09